Autobiografia
A pedra passou rente, zunindo. No tronco seco da árvore, solene, o lagarto virou o pescoço comprido na direção do assovio da pedra e ignorou. Devem estar lá até hoje. O lagarto e a pedra. Naquele tempo, o tempo passava devagar.
O som da cigarra no sol do meio dia não deixa ninguém surdo. Mas é só por um pouco. É uma sirene. Um zumbido de dimensões sinfônicas. As árvores costumam ser frondosas. O tronco da largura que um menino não tem tamanho pra abraçar. Debaixo da árvore, a sombra. De cima, a cigarra e aquele som que atravessa as distâncias. Não é à toa que explodam!
Andávamos de bicicleta. Íamos aos ermos, tão longe quanto as pernas agüentassem e antes da hora do jantar. A maior parte das vezes visitávamos os mesmos lugares. Só uma vez ou outra descemos o córrego, no meio da floresta.
Tínhamos medo do lobo-guará. Ele nunca apareceu, mas, certa vez, brincávamos de pular do alto de um barranco, um dos meninos torceu o pé. Já socorrido e falando muito nome feio, ele ainda pôde assistir a minha tentativa de realizar o salto. Me esborrachei, igualmente, mas não torci nada, nem machuquei, saí só encharcado das águas do córrego, tombo de costas. Demorou voltar naquele dia, o amigo na garupa de uma das bicicletas e um outro dirigindo duas ao mesmo tempo. Pó da estrada.
O vitrô é uma janela engraçada. Não deixa ver o mundo lá fora, é pequeno e os vidros são foscos. Quando emperra, não há quem tenha força pra puxar a alavanca. Apesar disso, em lugares onde bate muito sol, faz as vezes do vitral da igreja e projeta luz colorida pra dentro do cômodo.
Eu ouvia os mesmos discos muitas vezes, na vitrolinha portátil, iluminado pelo vitrô. Toda tarde, durante longas horas. A memória nunca me abandonou. Fecho os olhos e ouço, em detalhes, a música e vejo a luz atravessando o vitrô e a colcha de cama, vermelha, os bordadinhos e as franjas.
Tirando uma vizinha que eu tinha, as meninas só apareceram na minha vida muito depois. Um mundo só de meninos, descalços e com uns calçõezinhos de algodão da marca Hering. Muita ladeira pra subir, pouca lição pra fazer, um futebolzinho pra jogar. Mas o que eu mais gostava mesmo era de bicicleta.
Lia quase que só gibi. Cheguei aos 13 anos de idade com a astronômica marca de UM livro lido: "O Último dos Moicanos", por favor não me criem constrangimentos perguntando coisas a respeito da história.
Lia bem, em voz alta. Nas festas decorava poesia pra recitar. Uma - em roupas de gaúcho - falei prum auditório lotado e completamente azul do colégio. Pelo menos foi assim que os meus olhos viram. Tremi de medo e, ao que tudo indica, falei tudo direitinho.
Meu pai conta uma história de infância muito parecida com essa, tanto que, pensando bem, misturei a minha com a dele. Eu acho que nós éramos parecidos.
Eu sabia que a estrada interminável estava prestes a terminar quando o céu ficava cinza.
São Paulo era um mundo de chaminés, caminhões e pó de óleo diesel.
A imagem das primeiras avenidas e dos prédios altos que havia se tornado tão familiar para mim, de tanto que viajamos e fomos e viemos, ganhou um peso de tristeza muito grande quando, daquela vez, trouxemos a mudança, pra não voltar.
Todo o sol e a sombra das árvores e o guizo das cigarras, as ladeiras e a estrada de terra ficaram longe e um inverno imenso, longo e indisfarçável se formou no céu da minha infância.
A bicicleta não veio. Não se anda de bicicleta em São Paulo, por mais que eu reclamasse, explicou meu pai. Tudo invertido. Nem criança exatamente mais eu era. Um rapazinho da 7ª série: pouca lição pra fazer, muita tv pra assistir e uma solidão enorme, daquelas que se calcula em léguas.
Anos mais tarde, arranjei uma bicicleta. Muito velha, caindo aos pedaços, saí pra rua e quase concordei com meu pai. Não que fosse impossível andar de bicicleta em São Paulo. Mas não tinha a menor graça.
Quando aprendi a tocar violão, desentristeci. E nunca mais pensei em outra coisa que não fosse ser artista. Toquei horas incontáveis nos últimos 25 anos. Primeiro trancado no quarto, depois na roda com os amigos, na escola, em bares, em teatros, em salas de aula. Tudo o que eu faço mistura música no meio. E quando eu não estou fazendo nada, toca música dentro da minha cabeça e quando estou cansado toco um pouco pra espairecer e se estou confuso, toco e ajuda a me organizar. Quando estou triste, toco, se estou alegre, toco também. Mas, principalmente, toco pra trabalhar. Eu nunca escolhi essa profissão. Foi ela que escolheu a mim.
Das coisas mais impressionantes que me aconteceram na vida, uma delas foi um certo primeiro beijo que eu dei uma certa vez. Foi no final de uma noite de conversa e bebida onde tudo parecia se encaixar com o máximo de precisão. Cada diálogo!
E quando já estávamos indo embora, na despedida mesmo, é que veio o beijo e foi um só, não muito longo, só uns segundos, mas parecia que o mundo inteiro poderia ter sido beijado naquele beijo, de tão enorme a sensação que me tomou o corpo todo. Nunca mais tivemos um daquele, igual, mas ali, algo parecia anunciar uma vida longa e extrema. Veio o casamento e tudo o que duas pessoas vivem quando estão amadurecendo juntas. E veio ainda a experiência mais radical que eu acredito que alguém no mundo possa ter: ter filhos. Se aquele beijo foi um só, as meninas espalharam por completo pelas nossas vidas esta sensação de inteireza e abismo que a primeira noite avisava.
Se algo há de relevante na minha vida é o orgulho que eu sinto da minha profissão. Admiro tanto o modo de viver e as obras dos meus ídolos que, só de me sentir um pouquinho parecido com eles, me encho de um ufanismo de mim mesmo e falo alto, dentro do pensamento: sou artista!
Na Grécia antiga, eu ouvi dizer, os artistas não gozavam de grande prestígio; ganhavam a vida com as próprias mãos e viviam encardidos da fuligem típica que recobre os cabelos dos escultores e ceramistas. Parece que, na história da Humanidade, artistas só foram vistos como seres especiais, dotados de uma inspiração divina, em algum ponto obscuro do século 19, se não me engano. Na maior parte do tempo, os pintores se lambuzaram com suas tintas, os escritores emporcalharam a casa inteira com seus papéis rabiscados, os músicos estiveram às voltas com as intermináveis regulagens do mecanismo de seus instrumentos, os borrões na partitura e os atrasos de salário, mais ou menos como qualquer pessoa e ao contrário da vida luxuosa que os galãs de televisão querem que a gente pense que eles levam. Que bom! De onde poderia vir o material para se fazer as obras de arte, senão da vida que todos nós vivemos, um dia depois do outro, todos um pouco iguais?
Que mais haveria pra falar senão daquilo que é comum a todos e a cada um de nós?
Se alguma diferença há entre quem é artista e quem não é, é a vontade que o artista tem de deixar por escrito suas pequenas vivências, seus lagartos, seus vitrôs, sua vitrolinha portátil e suas tardes ensolaradas no quintal da casa de cidade pequena e dar a tudo isso o vigor das experiências que não se repetem, dos beijos únicos e dos grandes momentos. Uma vontade de registrar que a vida de cada pessoa é só dela e que vale a pena ser contada, pra que possa permanecer, assim nas obras como nos filhos, amém.
São Paulo, 2001